A voz de meu pai




A voz de meu pai

Não me lembro da voz de meu pai.
Recordo-me de suas ideias, opiniões e crenças;
não de sua voz.

Se falava muito ou pouco
Se era categórico em suas afirmações
se sua voz era macia ou grave
não consigo me lembrar

me lembro de sua boa-vontade,
amizade e paciência
com minhas manias de adolescência.

De seus conselhos
sobre o trato com as meninas
para mim e para toda a molecada,
cujos pais não tinham tempo
ou coragem de tocar no assunto.

Seus eternos problemas financeiros
nunca impediram
que eu fosse ao cinema,
comprasse camisa-esporte
ou sapato marron.

Para eu me dar bem na vida,
deveria de ser engenheiro ou militar.
Tinha muitos amigos que o chamavam pelo sobrenome.

Lembro-me do retrato que fez de minha mãe
Perdido para sempre
no sótão da casa do interior.

Do seu corte de cabelo,
dos seus óculos,
do seu bigode,
das sopas com estranhos temperos
improvisadas depois do cansaço do dia.

De como assobiava no banheiro,
para eu despertar de manhã.
Mas do timbre de sua voz
já não me lembro mais.
16/02/2016

Comentários

Liana disse…
Nossa, muito lindo!
Sabe Mário, nos despedimos e começamos a resolver nosso luto, a partir da ausência do reconhecimento da voz da pessoa de afeto. Talvez a lembrança da voz seja a última a se apagar. Mas, a maneira, a musicalidade, da expressão dessa voz, ficam impregnados no nosso imaginário, como uma maciez redonda para nos dar colo pela vida à fora.
Lindo o que escreveu.

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